11/07/2014 Transferência de cuidados dos filhos para terceiros pode afetar saúde emocional das crianças / Clínica de Olhos Dr Luis Tadeu Ambros

Distraído em meio a uma sala cheia de brinquedos, ora jogando futebol com o pai, ora brincando de carrinho com a mãe, o pequeno Bernardo, cinco anos, esbanja animação e energia. Imerso em um ambiente da casa montado especialmente para ele, fica à vontade com sua bagunça. É na hora de chamar pela mãe, entretanto, que o menino mostra os sinais de um passado bem diferente do que vive hoje:

— Profe?... hãã... mãe? — confunde-se.

Imediatamente, a administradora de empresas e mãe de Bernardo, Luciana Moreira, de 48 anos, atende ao chamado. Acostumada com a confusão, esforça-se para reconquistar o papel que, sem se dar conta, foi deixando de lado durante os primeiros dois anos de vida do único filho. Mesmo antes de completar quatro meses, Bernardo foi colocado em uma creche, onde permanecia diariamente das 7h às 19h (e, às vezes, até as 22h). Distante dos pais que, preocupados em trabalhar para sustentar a casa acabaram ausentando-se da vida do menino, ele se tornou mais um exemplo do que muitos chamam hoje de "filhos terceirizados".

Criadas e educadas sob os cuidados de babás, professores e ajudantes, crianças como Bernardo, passam os primeiros anos de vida distantes dos cuidadores primários (em geral, os pais) e acabam não criando vínculos fortes com a família. Em sua maioria, não saem ilesas desse período.

Saúde emocional pode ser comprometida

Conforme a psicóloga Tatiana Hemesath, do Serviço de Psicologia do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA), a terceirização dos cuidados com os filhos é uma tendência que cresce a cada dia, e suas consequências vêm sendo estudadas por diversas áreas do conhecimento. Ainda que as conclusões sejam diversas, o que todos indicam é que o cuidado que a criança recebe principalmente nos primeiros anos de vida é decisivo para o seu desenvolvimento e pode predizer, entre outras coisas, sua saúde emocional no futuro.

— Padrões de comportamento diferenciado estão sendo identificados nas crianças que se desenvolvem na sociedade atual, decorrentes tanto de uma maior ausência dos pais nas rotinas, quanto da terceirização desses cuidados. E esses cuidados não dizem respeito apenas à alimentação, higiene, estímulo físico, mas também à inserção de afeto e de limites na educação da criança.

Mudança de rotina

Vivendo uma rotina frenética de trabalho, foi somente em uma conversa com a diretora da escola que Luciana passou a perceber as falhas na relação com o filho. Pouco antes de completar dois anos, Bernardo começou a se tornar agressivo com os colegas, e o diagnóstico foi dado aos pais de forma clara e objetiva:

— Nos disseram que estávamos abandonando nosso filho. Foi um choque perceber isso, mas foi importante, pois imediatamente decidimos começar a resgatar o vínculo com ele. Me dei conta que eu nem conhecia o Bernardo direito. Ele já sabia comer sozinho e eu seguia dando comida na boca dele — relembra a mãe.

Para passar mais tempo com o filho, o casal decidiu procurar a ajuda de psicólogos e reorganizar os horários de trabalho, agora colocando a família em primeiro lugar. No turno da manhã, Bernardo fica aos cuidados do pai, o corretor de imóveis Paulo Masi, 55 anos. Juntos, tomam café, brincam e, duas vezes por semana, o pai leva o filho para aulas de natação e futebol, onde acompanha cada mergulho e jogada do menino. As tardes de Bernardo são na escola, mas, a partir das 18h, ele já está de volta à sua casa, onde esgota as energias restantes ao lado da mãe e do pai, que cozinham para o menino, brincam com ele e o ajudam nos temas.

— Antes eu chegava tão cansada que nem tinha condições de dar atenção ao Bernardo. Hoje, entendo como isso é importante. Logo depois que mudamos nosso comportamento, ele também mudou. Hoje é mais afetivo e deixou a agressividade de lado. Sei que o período em que ficamos afastados ainda pode trazer consequências para o futuro, mas nos esforçamos todos os dias para reduzir isso — desabafa a mãe.

Culpa da sociedade moderna?

Alguns afirmam que o fenômeno de terceirização dos filhos é culpa da sociedade moderna — que demanda da mulher a função de profissional, mãe e esposa ao mesmo tempo. Outros entendem que a responsabilidade é do mundo altamente competitivo e egocêntrico em que vivemos. Conciliar a vida profissional com o cuidado dos filhos não é tarefa fácil, mas nem por isso precisa ser uma missão impossível. Saber até que ponto uma ajuda extra é benéfica e em que momento ela começa a atrapalhar ou substituir o papel dos pais é o primeiro passo para criar uma relação saudável com os filhos.

Para a psicóloga Raquel Suertegaray, especialista em Infância e Adolescência pelo Instituto Contemporâneo de Psicanálise e Transdisciplinaridade de Porto Alegre, pais que trabalham e necessitam deixar os filhos com uma babá ou na creche por algum período do dia não precisam necessariamente terceirizar a educação e o cuidado, desde que saibam aproveitar bem o tempo com os pequenos para criar vínculos fortes, educar de forma correta e estabelecer laços afetivos. Conforme a especialista, a terceirização se dá quando o casal transfere para outras pessoas a tarefa de cuidar, preocupar-se e responsabilizar-se pela criança. Nesses casos, além de não ter uma referência definida de quem é o cuidador, os filhos podem ficar sem a noção de limites e apresentar dificuldades de relacionamento.

— Educar dá trabalho. Pesquisas mostram que crianças terceirizadas tendem a apresentar muito mais problemas emocionais por toda a vida e dificuldades na escola e no trabalho, nos relacionamentos pessoais, são mais suscetíveis a doenças psicossomáticas, entre outros reflexos — resume o pediatra José Martins Filho, professor da Universidade de Campinas (Unicamp) e presidente da Academia Brasileira de Pediatria.

E na hora de cuidar, tanto a quantidade de tempo como a qualidade são importantes. Voltar mais cedo do trabalho para ficar com o filho, mas deixar a cabeça no escritório, mais preocupado com prazos do que com a brincadeira, não é nada recomendável.

— Os pais devem procurar ter um tempo de qualidade junto aos filhos — afirma a psicóloga Tatiana Hemesath.

Harmonia no ambiente familiar é a chave para equilíbrio emocional

O primeiro ano de vida de uma criança é, para muitos especialistas, o mais importante para estabelecer fortes laços entre pais e filhos. Conforme o pediatra José Martins Filho, é neste período que o bebê começa a construir sua personalidade, seu ego, e os rompimentos repentinos com a figura do cuidador podem interferir no desenvolvimento. Estudos realizados em diferentes países mostram que "filhos terceirizados" tendem a ter menos facilidade para desenvolver seus estudos, mais chance de ficarem desempregados e até de conseguirem empregos piores que crianças crescidas em famílias em que o afeto e o carinho sempre existiram.

— Há estudos, inclusive, que mostram que crianças em situação de ausência familiar e com carência afetiva têm até o crescimento é afetado. Elas crescem menos e podem apresentar um possível déficit imunológico, tornando-se mais suscetíveis a doenças. Sem falar nos distúrbios de comportamento — ressalta Martins Filho.

E os sinais dessa falta dos pais elas começam a manifestar desde cedo. Assim como a agressividade do menino Bernardo (que aparece no início da reportagem) chamou a atenção dos colegas e professores, a demanda pela atenção materna e paterna pode ser observada quando as crianças começam a ficar mais manhosas, a mostrar resistência para ir à escola, na hora de dormir ou comer. Por isso, é fundamental os pais conhecerem bem seus filhos e, sobretudo, saberem como agir.

— Um cuidado nestes momentos é não reforçar os comportamentos negativos dos filhos por culpa ou para resolver as situações de forma imediata, atendendo desejos guiados pelo prazer das crianças (oferecer guloseimas ou brinquedos novos para parar de chorar) por períodos prolongados, pois podem se instaurar problemas comportamentais que posteriormente serão prejudiciais para as crianças — complementa a psicóloga Raquel Suertegaray.

Além de garantir um tempo de qualidade ao lado dos filhos todos os dias, escolher bem com quem deixar os pequenos nos outros turnos é fundamental para que a criança cresça em um ambiente harmonioso. A psicóloga Tatiana Hemesath explica que, quando uma família opta pela ajuda de um terceiro, é preciso que este esteja de acordo com os preceitos educativos que a mãe e o pai orientam e com os padrões culturais da família. Não adianta, por exemplo, proibir a criança de assistir à TV enquanto a babá libera até o controle remoto para ela.

— Um referencial coerente e definido é essencial para o desenvolvimento da criança. Sempre lembrando que a "fórmula" adequada de cuidado é um equilíbrio entre o afeto e o limite. Isso possibilita que a criança se desenvolva tendo clara para si a noção de certo e errado, ou seja, um referencial interno que se construiu a partir dessa relação terceirizada, além do estabelecimento do vínculo com a mãe — resume Tatiana.

Dicas para estreitar laços com as crianças

— Reserve um período do dia para acompanhar os estudos do seu filho. Dê uma olhada nos cadernos, ajude nos temas, pergunte sobre as notas e estude ao lado dele. Participe.

— Saia da rotina. Nos finais de semana, leve seu filho para conhecer lugares novos, sem horários rígidos nem compromissos. Leve a parques e faça atividades ao ar livre. Andar de bicicleta e fazer piqueniques são opções que as crianças adoram.

— Se você chegar em casa e ainda tiver de preparar o jantar, convide seu filho para cozinhar com você. Desta forma, pais e filhos podem se divertir enquanto preparam a refeição, e os pequenos ainda aprendem sobre os alimentos.

— Se for preciso deixar a criança em uma creche ou com babá, pesquise bem antes de escolher. Visite escolas, converse com as cuidadoras e escolha alguém que tenha valores semelhantes aos seus. É essencial orientar a pessoa que vai cuidar sobre como agir com a criança, já que a educação não se faz somente de forma presencial.

— Acompanhe sempre seu filho em médicos e dentistas. É importante estar sempre de olho na saúde dos pequenos.

— Se você chegar em casa e seu filho já estiver dormindo, dê uma passada no quarto dele e, sem acordá-lo, faça carinho, beije e fique um tempo ao seu lado. O contato físico é sempre muito importante.

Filhos terceirizados podem apresentar...

— Prejuízos no desenvolvimento social, afetivo e até mesmo cognitivo

— Baixa autoestima

— Ansiedade de separação e sentimento de abandono

— Ausência de referenciais e valores familiares definidos

— Agressividade

— Falta de limites

— Transtornos de comportamento

— Depressão

— Dificuldade no convívio social

Estreitar relações com os filhos desde os primeiros meses vida ajuda a desenvolver...

— Senso de competência aumentado na criança

— Autoestima

— Identificação forte com os pais, fundamental no processo de desenvolvimento

— Redução de ansiedade quando a mãe não está presente

— Desenvolvimento cognitivo adequado

— Bons laços sociais

Fontes: psicólogas Tatiana Hemesath e Raquel Suertegaray.


Autor: Jaqueline Sordi 
Fonte: Zero Hora 

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