09/06/2014 Conveniência, medo e desinformação transformam os índices de cesárea em epidemia nacional / Clínica de Olhos Dr. Luis Tadeu Ambros
Apolo, filho de Zeus, removeu da barriga de sua amada, Corônis, o filho Esculápio, deus da medicina. O procedimento, conta a mitologia greco-romana, foi realizado após a gestante morrer em trabalho de parto. Uma incisão abdominal também teria sido realizada, segundo historiadores, para fazer nascer o imperador Julio César, em 100 a.C. Reconhecida historicamente como um procedimento indicado para salvar a vida de mães e bebês durante o parto, a cesárea tem alcançado índices tão altos que virou motivo de polêmicas e discussões ao redor do mundo. E no Brasil não é diferente.
Por vontade própria ou indicação médica, quase um milhão gestantes no país são submetidas à cesariana todo ano. Dados da maior pesquisa sobre parto já realizada no país, Nascer no Brasil: Inquérito Nacional sobre Parto e Nascimento, coordenada pela Fundação Oswaldo Cruz em parceria com o Ministério da Saúde, revelam que o índice de partos por procedimento cirúrgico é de 52% e supera, em muito, a recomendação da Organização Mundial da Saúde (OMS) — que indica taxas ideais entre 10% a 15% dos nascimentos.
A origem do problema parece estar no meio do caminho entre a descoberta da gravidez e o temido e sonhado dia do nascimento: cerca de 70% das entrevistadas pela pesquisa desejavam, no início da gestação, um parto vaginal.
Entre os fatores que elevam a taxa de cesáreas às alturas, os especialistas apontam, sobretudo, a ansiedade do final da gestação, o receio de que a criança possa sofrer algum dano durante o parto normal, o medo da dor e a comodidade de poder marcar o dia e a hora. São muitos os mitos que cercam o nascimento, e é a falta de informação o principal motivo da tomada de decisões antecipadas ou equivocadas, garante o médico Edson Cunha Filho, obstetra do Hospital São Lucas da PUCRS e plantonista do Hospital Moinhos de Vento:
— O medo de não saber a hora certa e a angústia de que a qualquer momento o processo do parto possa ser desencadeado podem dar à gestante a falsa impressão de que a cesariana é melhor, mais prática e mais garantida. É necessário muito estímulo, paciência e convicção do obstetra para que as pacientes continuem perseverantes na ideia do parto normal — relata.
Mas nem sempre o profissional exerce o papel de protagonista na história. O número de cesáreas eletivas — aquelas programadas antes de a grávida entrar em trabalho de parto, sem urgência médica — salta quando as angústias da futura mãe vão de encontro aos interesses do médico, que muitas vezes acha mais confortável agendar os procedimentos sem ter de ficar à espera do parto normal, explicou a coordenadora da pesquisa, Maria do Carmo Leal.
Controle versus imprevistos
Para a obstetra Maria Lucia Opperman, chefe do Centro Obstétrico do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA), muitos médicos optam pelo procedimento cirúrgico porque conseguem ter um maior controle sobre o nascimento, o que não necessariamente ocorre no parto normal, quando o profissional precisa esperar o ritmo natural da paciente e dos processos que envolvem o nascimento, muitas vezes imprevisíveis.
— É uma realidade lamentável que demonstra a distorção dos valores da nossa sociedade atual, e como os eventos fisiológicos saudáveis estão distantes de muitos de nós. Compromissos marcados são mais convenientes para qualquer agenda. O importante é refletir sobre as consequências dessa conveniência — explica a obstetra Brena Melo, conselheira da Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo).
As complicações possíveis
As altas taxas de cesáreas no Brasil, consideradas por especialistas como uma epidemia, trazem consigo uma série de justificativas: "a cesárea é mais segura" e "não vou sentir dor" são algumas das frases mais comuns. Os riscos, entretanto, são pouco valorizados. Conforme o obstetra Edson Cunha Filho, a cesariana pode causar uma série de complicações, entre elas as chances de a criança nascer prematura (nos casos de cesáreas agendadas), aumento no risco de problemas respiratórios para o bebê e problemas pós-cirúrgicos, como infecções, para a mãe.
— O índice de complicações é de três a cinco vezes maior do que no parto normal. A cesariana tem indicação, sim, e salva vidas, mas deveriam ser respeitadas as suas verdadeiras indicações — alerta.
Nem todo nascimento seria bem-sucedido de maneira natural, por limitações de saúde ou físicas da mãe, do bebê ou de ambos. Mas, quando a mãe está saudável, o bebê bem encaixado e tudo fluindo bem, o parto normal é a melhor opção. E os benefícios são diversos:
— Menor tempo de internação hospitalar, menor risco de infecção, menor risco de acidentes tromboembólicos e de sangramento, recuperação materna mais rápida e com menos dor, reforço no vínculo afetivo mãe e bebê, favorecimento do aleitamento materno e menor incidência de desconforto respiratório no recém- nascido — explica o especialista.
Sete meses e oito médicos depois, Maureen se prepara para o parto
Parir um filho no Brasil pareceu, pelo menos por algumas semanas, uma boa ideia para a americana Maureen Turnbull Arbelo, 36 anos. Nascida no estado do Colorado, a então estudante se mudou para Porto Alegre há sete anos para concluir o doutorado. Encantada com o estilo de vida dos gaúchos, decidiu ficar, casou com um brasileiro e abriu uma empresa de ensino. Ao descobrir a gravidez, chegou a comemorar o fato de estar aqui. Lá, conta Maureen, os partos são muito medicalizados, sem o incentivo ao parto humanizado.
Sua observação é confirmada pela obstetra Maria Lucia Opperman, chefe do Serviço de Obstetrícia do HCPA. Conforme a especialista, publicação recente do American College of Obstetrics and Gynecology revelou que, no EUA, em 2011, uma em cada três gestantes fez cesárea. O que Maureen não sabia é que esse número é comparável à média dos hospitais públicos brasileiros, e inferior à média dos hospitais privados, de 88%:
— Tenho uma amiga de infância que mora na Inglaterra e que engravidou no mesmo período. Ao conversarmos, logo nas primeiras semanas de gestação, ficamos contentes porque estávamos grávidas fora dos Estados Unidos. Só que ela tinha motivos pra comemorar, e eu não.
Dados do Health and Social Care Information Centre, órgão do governo britânico, informam que 25,5% dos partos entre 2012 e 2013 foram cesáreas. Esse número, ainda que acima do recomendado pela OMS, é muito inferior ao de outros países. Entre os motivos, o esforço do governo para que as gestantes priorizem o parto normal, e porque a profissão de parteira é reconhecida por lei desde 1902.
Pelo direito de participar da decisão
No Brasil, Maureen enfrentou dificuldades para encontrar um médico que lhe passasse segurança:
— Visitei sete médicos. Todos diziam que o parto normal tinha "poréns", e nenhum se mostrava muito disposto a trocar ideias, explicar detalhadamente os procedimentos.
Praticante de yoga e entusiasta do parto humanizado, ela não desistiu. Foi na oitava tentativa, e já com cinco meses e meio de gravidez, que a americana encontrou uma obstetra disposta a conversar sobre as decisões do parto. Mas aí veio a questão do hospital. Somente uma instituição da Capital permite a presença de uma doula e do pai da criança na sala de parto, duas pessoas que ela quer por perto durante o nascimento do primeiro filho. Hoje com sete meses de gestação, ela se prepara para o parto com caminhadas e alimentação especial:
— Não consigo entender porque é preciso lutar por algo que deve ser natural. A decisão sobre o parto deveria ser tomada em conjunto, entre o médico e a gestante. Se não der pra ser natural, tudo bem, mas não quero ser manipulada. Quero saber que tentei, quero poder discutir os riscos e as possibilidades com o profissional.
Autor: Jaqueline Sordi
Fonte: Zero Hora
Autor da Foto: Tadeu Vilani
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